Nasci em 1956 em São Caetano do Sul, na casa de meus pais,
de parto normal com assistência de uma parteira. Tudo muito diferente do que
vemos hoje, mas era assim, pelo menos foi desta forma comigo.
Mãe e pai imigrantes ucranianos, chegados ao Brasil depois
da Segunda Guerra Mundial. Nada muito simples, condição que exigia boa
capacidade de adaptação a uma cultura diferente, em época de construção ou
reconstrução de uma vida abalada pela violência da guerra, ainda na infância e
parte da adolescência.
Fui criança arteira e alegre, pequena menina que aprendeu a
falar na língua de seus pais, o Ucraniano. E assim iniciei minha vida de
estrangeira. O Português aprendi com outras crianças brincando na rua e depois
na escola.
E pensando hoje sobre isto, entendo o impacto da linguagem
na cultura, é através das palavras que assimilamos os costumes, valores,
comportamentos de um povo. E eu a que povo pertenço? Brasileiro, ucraniano?
Tinha muita dificuldade em entender certas coisas como
“namoro no portão”, o que significa, qual a diferença? Se passar do portão o
que muda? E quando ouvia a mãe chamar seu filho e ele responder “senhora?” Que
estranho, nunca foi assim com minha mãe, e, a primeira vez que lhe respondi
“senhora” quando me chamou, levei uma bronca da qual nunca entendi a razão! E
“mistura” ao se referir ao acompanhamento do arroz e feijão! Por que “mistura”?
Minha cabeça se enchia de perguntas.
Eu observava tudo, ouvia com atenção o que as pessoas
diziam, tentava entender como tudo funcionava e como deveria me comportar! Uma
estrangeira era eu!
Em casa só conversávamos em Ucraniano, até que, na escola,
minha professora sugeriu aos meus pais que parassem com o hábito, pois eu
confundia as palavras. Afinal, o Português para mim era uma língua estrangeira!
E assim fui crescendo, entre tropeços, dúvidas e muita
atenção a tudo o que acontecia à minha volta. Nossa casa era uma das poucas
aqui no Bairro Santa Maria, onde brinquei muito com o barro da rua de terra,
subi em árvore e, claro, caí também! Não faltaram aventuras no carrinho de
rolimã, que eu e meu irmão pilotávamos em descida de terra desafiadora! Não sei
como não nos arrebentamos, porque quedas não faltaram. Às vezes acho que
tínhamos dois anjos da guarda com cada um, porque aventuras e arrojos eram constantes!
Tempo bom, em que a vida era repleta de descobertas com erros e acertos sem
fim.
Tínhamos um descampado com flores silvestres que eu adorava
colher. Passava bom tempo olhando florzinha por florzinha, sentia seu perfume,
colhia as mais bonitas e trazia para casa para transformar qualquer copo em um
vasinho para enfeitar a mesa da cozinha. Fiquei sabendo um tempo depois que
nossa Vila Santa Maria tinha sido uma pequena chácara com plantação de flores.
Que incrível! Por isso, até hoje brotam flores que ninguém semeou! Talvez ainda
sementes daquela época, penso eu. Que sorte a minha, nascer em solo onde havia
muitas flores! Amo flores e árvores também, o que vemos em muitos lugares aqui!
Gosto disso e algumas até continuo a plantar no quintal que ainda mantemos,
porque ainda vivo nesta cidade e no mesmo quintal onde nasci. Isto é que é criar
raízes!
Muitas transformações aconteceram, São Caetano do Sul se
desenvolveu muito em pouco tempo. Hoje, é uma cidade que parece que não falta
nada. Minha escola primária ainda está firme, “Professor Décio Machado Gaia”.
Toda manhã lá ia eu para aula sozinha, subia um morro com trilha que dava pra
escola. Ia feliz da vida, gostava da escola, onde toda manhã tomava uma caneca
de chocolate quente, lembro até hoje do sabor! Do cheiro da madeira das
carteiras, não se esquece, assim como da professora do primeiro ano, como era
brava aquela moça! Eu não ousava contrariá-la, mas sobrevivi a ela, e a vida
prosseguiu. Sempre me interessava por algo novo e diferente. Desfiles de 7 de
setembro eram um evento e lá estava eu de bandeirante! Minha mãe costurou a
roupa, que ficou muito bonita, e, mesmo que a chuva no final do evento nos
obrigasse a procurar um abrigo, isso não era problema, pois o melhor já havia
acontecido, o desfile pela escola! E, claro, depois lá íamos nós para o
fotógrafo para as fotos de lembrança! Todo final de mês, nos arrumávamos para a
ocasião, era obrigatório! O que foi bom, pois hoje posso rever um pouco da
minha vida registrada nelas!
A menina, queria experimentar, viver cada momento, aprender,
e, assim foram canto orfeônico, fanfarra, aulas de piano com minha professora
Eunice. Acredita que fiz parte de uma das primeiras turmas de música da
Fundação das Artes? Pois então, foi um erro, não pela Fundação, mas por eu ter
deixado minha professora Eunice, pois, na verdade, não queria ser pianista, só
queria tocar piano na casa da minha professora! E, quando quis interromper as
aulas na Fundação das Artes, foi um terror em casa, minha mãe ficou uma fera
comigo, mas não teve jeito, saí, e por anos, meu piano deixei fechado e,
depois, vendi, o que foi um equivoco. Não se vende um piano! Mas agora é tarde
e o trauma da reação da minha mãe foi decisivo para esse triste desfecho.
A menina estrangeira continua até hoje, pois ainda observo
tudo, como as pessoas agem, como são os costumes, como se comportam, quais os
valores sociais. Não os compreendo completamente, não concordo com alguns,
sinto-me, às vezes, um “pato fora da lagoa” tentando me adaptar. Minha cultura
de origem ficou no sangue, no coração e ainda fala alto dentro de mim. A
sensibilidade para a arte, o canto, que adoro, o senso poético e a firmeza em
relação aos valores éticos, a coragem e a resiliência, que não faltam no povo
ucraniano. Nunca esqueci minha origem, meus ancestrais, sua luta pela
sobrevivência num lugar tão gelado pelo inverno rigoroso, exigindo disciplina e
força para enfrentá-lo. Nunca apagamos nosso DNA de terras distantes, de povo
distinto!
Minhas avós eram de origem russa. Meu avô paterno tinha
ascendência mongol e meu avô materno era um mistério, amante da cultura e
literatura, que trago em meu coração, assim como minha avó. A baba Anna, linda,
uma poetisa que cantava, bordava, plantava, contava histórias, uma pequena
mulher, doce, brava e muito valente, características que eu herdei dela e as
vivifico no meu trabalho e na minha vida!
Posso dizer que sou uma ucraniana brasileira
sul-são-caetanense? Não sei, mas estou certa de que nossos ancestrais vivem
dentro de nós e esperam que os honremos sendo seres humanos melhores a cada
dia, por vontade e esforço. Acredito nisto, vivo isto!
Ala Voloshyn, dezembro de 2023
©Direitos reservados a Ala Voloshyn
Matéria publicada na Revista Raízes 67, Dezembro de 2023, Ano XXXV. Publicação da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, SP, Brasil. Jornalista responsável: Paula Fiorotti (edição e revisão)
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Com Paula Fiorotti |
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Raízes na Biblioteca Municipal, com Ana Maria Guimarães Rocha |