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DIREITOS AUTORAIS

Todos os textos aqui publicados são autoria de Ala Voloshyn.
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Família Voloshyn em São Caetano do Sul


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Tenho uma história para contar. É a da minha família, e confesso que não é muito simples fazê-lo. É um núcleo complexo, mais parece uma colcha de retalhos, no qual cada pedaço conta um pouco do tanto já vivido.
Costumo dizer que sou matéria-prima importada de fabricação nacional. Minha primeira língua foi o ucraniano. Aprendi na rua, brincando com meus amiguinhos, o segundo idioma, o português. Por muito tempo, sentia-me estrangeira por ter crescido em ambiente muito diferente daquele que observava na casa de meus vizinhos. Hoje, me considero brasileira, o Brasil é minha terra, onde nasceram meus filhos. Gosto muito disto, deste povo de várias origens, que torna o país rico e versátil.
A família Voloshyn é fruto da união dos ucranianos Maria Deckij e Volodymyr Voloshyn. Ela nasceu em 2 de outubro de 1930, em Poltava, e ele, em Kharkov (Carcóvia), no dia 19 de dezembro do mesmo ano. Até a guerra chegar para eles, viveram uma infância feliz, mas que, por volta de seus 10 anos de idade, se transformou completamente. A vida não mais seguia um curso alegre, mas de resistências e luta pela sobrevivência.
Quem nunca viveu um conflito tão grande e desumano como a guerra, não pode avaliar o grau de impacto que causa em um ser humano, principalmente numa criança. Eles sobreviveram, sim, mas somente hoje consigo entender alguns comportamentos de extrema defesa e temor por tudo que pareça uma ameaça à integridade pessoal. Somente hoje entendo a importância para esses dois estrangeiros, que chegaram ao Brasil machucados internamente pela violência, de um abrigo, de uma comunidade, de um país sem guerra. Somente hoje compreendo a relevância que representa a casa própria, que acaba se transformando em uma fortaleza de proteção.
Ambos chegaram ao Brasil em 1949, vindos num navio com outros muitos estrangeiros, em busca de uma nova vida. Desembarcaram na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Os imigrantes receberam ajuda de custo do governo brasileiro até conseguirem se estabelecer. Minha mãe veio com sua família, que somava cinco pessoas. Seus pais, Anna e Paniko, ela e dois irmãos, Alexandre e Nicola, então recém-nascido, partiram, depois de um tempo, para São Paulo e começaram uma nova jornada na cidade de Osasco.
Já meu pai, veio acompanhado por meus avós, Caterina e Ivan, e mais uma irmã, Eugênia. Eles partiram para o Paraná e se estabeleceram em Ponta Grossa. A irmã mais velha de meu pai, Lhuba, foi separada da família na Ucrânia e depois partiu para a Alemanha. Desde então, nunca mais a viram. Após algum tempo, ela retornou à Ucrânia, e hoje conversam via internet, mas, durante um longo período, se correspondiam apenas por meio de cartas.
Minha mãe conseguiu emprego numa fábrica de rádio para automóveis, a Telespark, e sua vida seguia em progresso. Meu pai, no Paraná, trabalhava numa oficina mecânica. Lá, aprendeu muito do ofício, contudo seu sonho era vir para São Paulo "para ficar rico", como costuma dizer. E assim fez, por volta de 1953. Logo após se instalar, conseguiu emprego na empresa Fichet, e, dedicado trabalhador, foi crescendo e a vida melhorando. Sua história em São Caetano do Sul começa nesse ponto, pois sua irmã Eugênia já morava na cidade com seu marido, sogros e um filho pequeno, Misha, e meu pai se hospedava em sua casa. Como todo estrangeiro, procurou estar perto dos familiares. Aqui, já havia outros ucranianos, que haviam se juntado em uma numerosa comunidade.
A vida prosseguia em ascensão para Maria e Volodymyr, até que, lá pelos anos de 1954, se encontraram num salão de baile alugado por ucranianos, na Rua Santa Catarina, no centro de São Caetano, onde semanalmente a comunidade se reunia para dançar madrugada a fora. Desse momento em diante, nunca mais se separaram. Em novembro de 1955, se casaram e vieram morar na Alameda Conde de Porto Alegre, no Bairro Santa Maria.
Para construir sua casa, um pouco antes, em 1954, meu pai comprou um terreno, que deveria ser grande, pois tinha a ideia de construir nos fundos uma oficina mecânica, para trabalhar à noite, após o expediente na Ford do Brasil, que funcionava no Bairro do Ipiranga, em São Paulo. Fato que nunca chegou a ocorrer, pois minha mãe, por insegurança, não o estimulou a ter um negócio próprio, pois acreditava que trabalhar numa indústria era mais seguro.
A casa foi construída por um mutirão que acontecia todos os finais de semana. Amigos patrícios se reuniam e ajudavam quem precisasse. E, num esforço conjunto, surgiu a sonhada casa de Maria e Volodymyr, que ainda não estava completamente pronta quando se casaram. Isso porque meu pai não queria esperar mais um ano para subir ao altar, recusava-se a se casar em ano bissexto (1956). Ele só não imaginava que sua filha nasceria exatamente nesse ano bissexto, eu!
Quando se mudaram, a casa tinha reboque apenas por dentro, o piso ainda era de cimento, sem nenhum revestimento. Os móveis se resumiam a um guarda-roupa, uma cama de molas e um colchão de algodão duro, tudo comprado em um brechó. Uma espiriteira fazia as vezes de fogão. O enxoval de minha mãe era guardado em caixas. Não havia luz elétrica, nem água encanada, mas um poço resolvia o problema, pelo menos naquele momento. A privada ficava do lado de fora, mas havia uma banheira dentro de casa, que durou anos. Era nela que tomavam banho, com água aquecida em um fogão bem simples, que adquiriram depois. Os vizinhos eram pouquíssimos, mas tudo caminhava bem, pois a residência já os abrigava, e até pão podia ser assado num forno feito no quintal, nos moldes daqueles que minhas avós tinham.
Minha mãe logo ficou grávida e os sacrifícios aumentaram. Ela e meu pai seguiam a pé, todas as manhãs, até a estação de trem de Utinga. Enfrentavam o trem lotado para o trabalho. Meu pai me conta que os vagões tinham apenas uma porta e que era comum pessoas entrarem pelas janelas, o que era difícil, especialmente para minha mãe, com a barriga cada vez maior.
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Em agosto de 1956, eu nasci e ela precisou parar de trabalhar, pois não havia quem pudesse cuidar de mim. Estou certa que foi um grande sacrifício, pois gostava muito de seu trabalho e da condição financeira que tinha. Em dezembro de 1958, nasceu meu irmão, Jorge. Ambos nascemos em casa, eu, nas mãos de uma parteira, já meu irmão veio ao mundo com a ajuda do doutor Cícero Carneiro. Minha mãe temia que nascêssemos em hospital, pois tinha medo que lhe roubassem os filhos.
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Crescíamos em meio a terra, árvores, flores, mato, galinhas, bichos de estimação e muito, mas muito espaço, para correr, subir em árvores e cair delas, cortar o pé em cacos de vidro mimetizados no mato, que crescia em torno de casa. Fazíamos cabanas para, no final da tarde, comer um lanchinho ou nos abrigar da chuva. Adorava estar num campo pertinho de casa, observando a vegetação, as flores com suas variadas cores, formas e perfumes, as quais colhia as mais bonitas para enfeitar a cozinha. Eu e meu irmão nos divertíamos num carrinho de rolimãs, utilizado para descer uma ladeira de terra toda acidentada, em alta velocidade, eu, na garupa e ele, no controle. Era bom demais!
A escola ficava perto de casa, mas precisávamos atravessar um morro para chegar e, não raro, encontrávamos cavalos pastando, às vezes um boi esquisito, cabras ciumentas e gatos perdidos. Até hoje, me lembro do chocolate quente, servido numa caneca de metal, da escola Professor Décio Machado Gaia. Eu era feliz e não sabia!
Tudo melhorava. A casa, os vizinhos aumentavam cada vez mais, assim como cresciam a rede de esgoto, o asfalto, e surgiam a padaria, a farmácia, entre outros estabelecimentos. Todos os sábados, íamos à casa de um patrício assistir à televisão em branco e preto. Era uma sensação! O primeiro carro que meus pais conseguiram comprar foi uma vitória e tanto, era um Simca Chambord, lindo! O telefone veio bem depois, lá pelos meados dos anos 1970. Como era muito xereta, fui a primeira a perceber que a linha tinha sido ligada.
Foram feitos grandes esforços para que não nos faltasse nada. Meu pai continuava trabalhando na Ford e minha mãe, cuidando da família. Eu e meu irmão seguíamos estudando. Frequentávamos então a Escola Vocacional Santa Maria. Havia muito papo-cabeça, diversas matérias, e eu me sentia feliz. Até que um dia, depois das férias, quando começaria o terceiro ano do ginásio (hoje oitava série do Ensino Fundamental), ao chegar à escola, percebemos um silêncio mortal. Os militares haviam passado pelo local e, além de prenderem alguns professores, recolheram todo material pedagógico. Para os alunos, restaram alguns professores abnegados e a tarefa de acelerar os estudos para nos adaptarmos ao que havia de mais comum naquela época. A situação foi triste e injusta para os olhos de uma adolescente que adorava tudo aquilo! Em seguida, fui estudar na Escola Estadual Coronel Bonifácio de Carvalho e, meu irmão, na ETEC Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo.
Se olharmos para trás, fica fácil perceber o quanto esta cidade cresceu e o quanto nós crescemos com ela, mas nem tudo são flores. Muitos conflitos internos e externos também foram vividos. No começo da minha história, citei a dificuldade de adaptação que um imigrante pode sofrer. Sempre percebi um clima de medo e inseguranças por parte de meus pais: a necessidade de ficar junto a outros imigrantes, vindos da mesma terra, a construção de uma igreja para abrigar sua fé, a dispensa sempre cheia e a desconfiança em relação a qualquer desconhecido. Cresci num ambiente repleto de lembranças do passado, fotos, objetos, comida típica, lenços bordados - cobrindo as imagens de santos -, a língua falada que misturava ucraniano e português. Para mim, foi um grande exercício de adaptação, de resistência diante de comportamentos incompreensíveis na época, mas que hoje entendo como tentativas inconscientes de se defender de um eterno agressor.
Imigrantes que chegam a um país, vindos de uma guerra, como meus pais, não podem ser iguais aos que chegam em momentos de paz. Os conflitos e traumas vividos não se transformam tão cedo e nós, da geração que os sucedeu, pudemos sentir na pele a dor da violência de uma guerra, pelo clima de insegurança e autodefesa, às vezes exagerado. Penso que, somente com o tempo, conseguiremos limpar as marcas do terror, de geração em geração.
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Meus pais viveram juntos por 57 anos, numa casa que foi se modernizando com o tempo. Hoje, percebo a importância que teve para eles, pois era sua fortaleza e proteção. São Caetano do Sul sempre foi, para eles, um lugar onde se sentiam seguros e, não à toa, meu pai quer ficar aqui até os seus últimos dias. Minha mãe já se foi. Em 2 de junho de 2013, faleceu depois de um profundo sofrimento, que nos fez sofrer junto. Escrevo e me emociono, pois não consigo esquecer suas dores e gostaria, de verdade, que fosse diferente. Em um dos seus últimos dias, pude compreender as consequências da guerra para ela. O médico dizia que tinha imensa dificuldade em medicá-la, pois seu sistema imunológico não conseguia distinguir uma bactéria de um antibiótico e, por isso, reagia excessivamente a tudo que lhe aplicavam. Só agora entendo suas alergias incuráveis, pois ela nunca deixou de se defender de um eterno agressor. Espero, de coração, que ela esteja em paz, pois, apesar de todo o sofrimento emocional, relatou ao padre de sua igreja que se sentia realizada por ter dado estudo aos filhos. Foi velada na igrejinha ortodoxa que ajudou a construir na Rua Oriente, no Bairro Barcelona, e sepultada no Cemitério das Lágrimas.
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 Meu pai ainda está conosco. Irá completar 84 anos neste ano. Segue no esforço da vida, com alguns momentos de tristeza, mas fazemos força para trazer-lhe um pouco de alento. É um homem forte e muito trabalhador, que tem a seu favor um espírito alegre e afetivo.
Esta é a breve história de Maria e Volodymyr, que chegaram ao Brasil, vindos de um país muito distante, de cultura diversa. Venceram, sobreviveram, construíram e deixaram um legado de resistência e uma família que hoje comporta seus filhos, eu e Jorge, e netos, Bianca, Pieter e Anna (filhos de meu irmão e de sua esposa, Níura Zanirato) e Maya, Ametista e Thor (meus filhos e de meu marido, Mario Dimov Mastrotti).


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Seguimos a vida compreendo melhor que cada pessoa faz sua história e cada história revela um esforço para ser feliz. Pois então, sejamos felizes, com todas as diferenças que não devem nos separar, mas sim nos engrandecer!
Fim
Ilustração:

Foto 1
Casamento de Maria e Volodymyr, realizado em novembro de 1955
Acervo/ Ala Voloshyn

Foto 2
A casa da família Voloshyn ainda em construção, em 1956. Na frente estão Maria e sua filha Ala
Acervo/ Ala Voloshyn

 
Foto 3
Volodymyr, Ala, Maria e Jorge (em seu colo) em foto do final da década de 1950
Acervo/ Ala Voloshyn

Foto 4
Maria e Volodymyr na varanda da casa. Foto de 2005
Acervo/ Ala Voloshyn


Foto 5
Fachada atual da casa, localizada na Alameda Conde de Porto Alegre. Maria aparece na escada de entrada
Acervo/ Ala Voloshyn

Foto 6
Registro familiar durante comemoração do Natal de 2013. Da esquerda para a direita, aparecem: Níura, Jorge, Pieter, Mario, Ametista, Ala, Thor, Volodymyr e Bianca. Sentados no chão: Gustavo ( noivo de Maya), Maya, Anna e a mascote Bia
Acervo/ Ala Voloshyn


* Texto publicado na Revista Raízes 50, Ano XXVI. São Caetano do Sul / Dezembro de 2014.
Jornalista Responsável: Paula Fiorotti (Mtb. 28.927). Edição : Fundação Pró-Memória , São Caetano do Sul.

Capa da revista Raízes, edição 50


Matéria da página 64 à 68
© Direitos reservados a Ala Voloshyn

4 comentários:

  1. Ala, minha querida amei esta reportagem e ver a foto de sua mãe bateu uma saudade. Parabéns. <3

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  2. Boa noite!
    Parabéns pela sua bela história de vida e de seus pais.
    Por coincidência, fiz desenho de arquitetura com a Niura em 1977, e fiquei muito feliz de vê-la tão bem e feliz.
    Fiquem com Deus!
    Antonio José

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